
Carros elétricos em condomínios brasileiros enfrentam batalha regulatória
O Brasil registrou 177.358 veículos elétricos em 2024, um crescimento de 89% sobre o ano anterior, mas a infraestrutura de recarga em condomínios residenciais permanece como principal obstáculo para expansão do mercado. Com custos de instalação variando de R$ 8.000 a R$ 20.000 por ponto de recarga e exigência de aprovação por dois terços dos condôminos, proprietários de veículos elétricos enfrentam uma complexa batalha jurídica, técnica e financeira. A ausência de legislação federal específica, combinada com normas municipais fragmentadas e regulamentações de segurança em desenvolvimento, cria um ambiente de incerteza que afeta tanto síndicos quanto moradores, em um mercado projetado para atingir 1,4 milhão de veículos até 2030.
Problemas estruturais limitam adoção em massa
A instalação de carregadores de veículos elétricos em condomínios brasileiros enfrenta três desafios fundamentais interconectados: capacidade elétrica inadequada, riscos de segurança não regulamentados e conflitos jurídicos sobre direitos de propriedade.
A maioria dos edifícios construídos antes de 2010 não possui capacidade elétrica suficiente para suportar múltiplos carregadores operando simultaneamente. Um único veículo elétrico carregando consome energia equivalente a um apartamento inteiro durante o período de recarga, podendo demandar entre 7kW e 22kW de potência. Em prédios mais antigos, particularmente aqueles das décadas de 1950 e 1960, os sistemas elétricos precisam de modernização completa, incluindo substituição de painéis, cabos e sistemas de proteção.
O Corpo de Bombeiros de São Paulo desenvolveu regulamentação técnica (Portaria CCB-001/800/2024) que estabelece requisitos rigorosos: distância mínima de 5 metros entre pontos de recarga e outros veículos, ou instalação de paredes corta-fogo com resistência de 60 minutos. Para instalações em subsolos, são exigidos sistemas automáticos de sprinklers, detecção de fumaça e ventilação mecânica com cinco trocas de ar por hora. Dispositivos de desligamento manual devem estar posicionados entre 20 e 40 metros dos pontos de recarga. Embora o risco estatístico de incêndio em veículos elétricos seja 60 vezes menor que em veículos a combustão, as características únicas das baterias de íon-lítio – incluindo alta dissipação de calor, emissão de gases tóxicos e potencial de reignição até 30 dias após incidente inicial – justificam precauções especializadas.
A norma técnica ABNT NBR 17019/2022 estabelece os requisitos técnicos obrigatórios, incluindo circuitos exclusivos para cada ponto de recarga, dispositivos residuais de proteção tipo A ou B, sistemas de aterramento adequados e capacidade de medição individual. Todo projeto deve ser executado por engenheiro eletricista credenciado no CREA com emissão de ART (Anotação de Responsabilidade Técnica).
Vácuo legislativo federal gera insegurança jurídica
O Brasil ainda não possui legislação federal específica regulamentando a instalação de carregadores elétricos em condomínios. O Projeto de Lei 158/2025, apresentado pelos deputados Adriana Ventura e Ricardo Salles (Novo-SP), busca garantir o direito de moradores instalarem carregadores em suas vagas privativas, mas ainda aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça.
Na ausência de lei federal, o Código Civil brasileiro determina que modificações em áreas comuns requerem aprovação de dois terços dos condôminos (Artigo 1.342). Essa exigência tem sido consistentemente aplicada pelos tribunais brasileiros. Em 2023, pelo menos sete ações judiciais foram registradas por proprietários de veículos elétricos tentando instalar carregadores após recusas de condomínios, segundo Gabriel de Britto Silva, da Comissão de Direito Condominial da OAB-RJ.
A Lei Municipal 17.336/2020 de São Paulo tornou-se referência nacional ao exigir infraestrutura para recarga em novos edifícios residenciais e comerciais. A legislação aplica-se apenas a projetos protocolados após 31 de março de 2021 e permite isenção para habitações de interesse social mediante comprovação de impossibilidade técnica ou econômica. O Rio de Janeiro promulgou a Lei Municipal 8.265/2024 exigindo pontos de recarga em estacionamentos privados com mais de 20 vagas, mas especialistas questionam sua constitucionalidade por interferir na autonomia condominial. Cuiabá, Brasília e outras cidades desenvolvem legislações similares seguindo o modelo paulistano.
Os tribunais brasileiros têm mantido posição consistente favorecendo a soberania da assembleia sobre direitos individuais. O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu no processo 10370142-6.2022.8.26.0100 que "atender ao interesse particular dos autores iria contra o interesse coletivo, pois além da rejeição do projeto pela maioria, impediria que outros moradores tivessem o mesmo direito sem impactar a estrutura da rede elétrica do condomínio". Uma exceção notável ocorreu no Rio Grande do Sul, onde o desembargador Dilso Domingos Pereira argumentou que "os condomínios inevitavelmente precisarão se adaptar à realidade do mercado de consumo automobilístico".
Síndicos navegam entre segurança e modernização
A posição dos administradores de condomínios reflete preocupações legítimas sobre responsabilidade, equidade e viabilidade técnica. Os principais fatores que levam à rejeição incluem: capacidade elétrica insuficiente (60% dos prédios anteriores a 2000), distribuição injusta de custos entre moradores que não possuem veículos elétricos, riscos de segurança não mitigados adequadamente, responsabilidade legal do síndico por instalações não autorizadas e limitações que impedem futura expansão para outros moradores.
Quando aprovam instalações, os condomínios geralmente exigem estudo de viabilidade técnica por engenheiro credenciado (custo de R$ 2.000 a R$ 3.000), projeto em conformidade com NBR 17019/2022, sistema de medição individual para consumo elétrico, seguro de responsabilidade civil atualizado e plano de manutenção preventiva documentado. A complexidade do processo decisório reflete a tensão entre modernização necessária e proteção dos interesses coletivos.
Mercado especializado oferece soluções integradas
O crescimento do mercado de veículos elétricos criou um ecossistema de empresas especializadas em soluções para condomínios. A WEG, fabricante brasileiro pioneiro de estações de recarga, oferece a linha WEMOB com sistemas de gestão de consumo e cobrança automática. Seus produtos variam de wallboxes de 7,4kW (R$ 5.000-8.000) a carregadores de alta potência de 22kW (R$ 8.000-12.000).

A Zletric, maior rede de recarga do Brasil com mais de 850 carregadores em 15 estados, desenvolveu parceria com a Enel X oferecendo a solução HomeMax para condomínios residenciais. O sistema permite medição individual de consumo, instalações compartilhadas ou privadas e gestão via aplicativo móvel.
A Power2Go opera modelo de assinatura cobrando R$ 19,90 mensais para uso compartilhado, com planos de expansão para 1.000 carregadores até o final de 2024. Sua tecnologia 100% brasileira inclui gerenciamento inteligente de carga, operação baseada em nuvem e cobrança individualizada.
A NeoCharge, subsidiária da NeoSolar, distribui a linha Schneider EVlink e desenvolveu cartilha específica para instalação em condomínios. A GreenV oferece carregadores portáteis e fixos de 3,6kW a 22kW com serviços customizados. A Tupinambá opera 2.800 pontos de recarga nacionalmente e desenvolveu inteligência artificial proprietária para otimização de carregamento.
Grandes players energéticos também entraram no mercado: Shell Recharge/Raízen Power planeja 30 hubs em 8 capitais brasileiras, enquanto Ipiranga expande sua rede de infraestrutura para veículos elétricos.
Custos totais superam expectativas iniciais
A implementação de infraestrutura de recarga envolve custos substancialmente maiores que o preço dos equipamentos. Uma instalação padrão custa entre R$ 8.000 e R$ 15.000 por ponto de recarga, incluindo equipamento e mão de obra. Instalações complexas com percursos de cabo superiores a 80 metros ou adaptações estruturais podem ultrapassar R$ 17.000.
Modernizações de painéis elétricos custam R$ 10.000 a R$ 50.000 dependendo dos requisitos de capacidade. Sistemas elétricos trifásicos adicionam R$ 5.000 a R$ 15.000. Trabalhos de cabeamento e conduítes variam de R$ 3.000 a R$ 8.000. Consultorias de engenharia e documentação ART custam R$ 1.500 a R$ 3.000.
Os custos operacionais incluem eletricidade a R$ 0,89 por kWh em São Paulo (R$ 54 para carga completa de bateria de 60kWh), manutenção preventiva de R$ 200 a R$ 400 anuais por ponto, assinaturas de plataformas de gestão de R$ 50 a R$ 150 mensais e aumentos de 5-10% em apólices de seguro condominial.
Apesar dos custos elevados, o retorno sobre investimento manifesta-se através de valorização imobiliária de 5-15% para vagas equipadas, taxas de ocupação 8-12% superiores no mercado de locação e prevenção de depreciação de 10-20% versus edifícios não equipados. Condomínios podem gerar receita cobrando R$ 2,00 a R$ 3,50 por kWh para visitantes ou adicional de R$ 50 a R$ 150 mensais em vagas equipadas.
Conflitos judiciais estabelecem precedentes restritivos
Os tribunais brasileiros têm consistentemente decidido a favor da autoridade da assembleia condominial sobre direitos individuais de instalação. O desembargador Francisco Darival Beserra Primo do TJ-CE estabeleceu que "a autorização do síndico individualmente é insuficiente para legitimar a construção do equipamento. Tal instalação deveria ter sido objeto de deliberação do condomínio em assembleia, inclusive para padronização e análise de segurança".
No Rio de Janeiro, o juiz Mauro Nicolau Junior determinou remoção de instalação não autorizada argumentando que "o uso do espaço comum necessariamente depende de autorização e aprovação em assembleia condominial. Ainda que assim não fosse, há sérias dúvidas sobre a segurança da instalação com sérios riscos latentes de incêndio e lesão aos moradores e ao patrimônio".
Rodrigo Karpat, presidente da Comissão de Advocacia Condominial da OAB-SP, observa que "a quantidade de pessoas optando por veículos elétricos em vez dos tradicionais ainda é pequena pensando no mercado automotivo do país, mas isso ocorre porque existem, por exemplo, Projetos de Lei visando exigir que novos edifícios tenham estações de carregamento dentro dos condomínios".
Projeções apontam crescimento inevitável da infraestrutura
O mercado brasileiro de veículos elétricos atingiu marcos históricos em 2024, com 125.624 veículos plug-in (71% do total) necessitando recarga externa. Ricardo Bastos, presidente da ABVE (Associação Brasileira de Veículos Elétricos), celebrou "um ano espetacular para a eletromobilidade, um ano de crescimento sustentável e números muito expressivos".
Projeções indicam mais de 335.000 veículos BEV/PHEV em circulação até 2025 e 1,4 milhão até 2030, segundo estudo da Bright Consulting. O Brasil aproxima-se do "tipping point" de 5% de penetração de mercado identificado pela Bloomberg como ponto de inflexão para adoção acelerada.
A distribuição geográfica concentra-se em estados de maior renda: São Paulo lidera com 56.819 veículos (32%), seguido por Brasília com 16.061 (9%), Rio de Janeiro com 12.841 (7,2%), Paraná com 12.056 (6,8%) e Santa Catarina com 11.500 (6,5%).
Comparações internacionais revelam atraso brasileiro
A China opera 3,2 milhões de pontos públicos de recarga, controlando 60% dos carregadores lentos e 85% dos carregadores rápidos globais. A Europa possui mais de 900.000 pontos com crescimento anual de 55,4% entre 2021 e 2024. Os Estados Unidos investem pesadamente em infraestrutura com mais de 50.000 carregadores rápidos.
Portugal oferece modelo de incentivos relevante: o governo subsidia 80% do preço de compra (máximo €800) mais €1000 para instalação por vaga através do Fundo Ambiental, com exigência de integração à rede Mobi.E.
A regulamentação AFIR da União Europeia exige 1,3 kW por veículo elétrico a bateria e 0,8 kW por híbrido plug-in, com cobertura de carregadores rápidos a cada 60km em corredores principais. A padronização através de conectores Tipo 2 e protocolos OCPP facilita interoperabilidade.
Tecnologias emergentes transformarão o setor
O sistema Vehicle-to-Grid (V2G), ainda não permitido no Brasil mas em desenvolvimento internacional, permite que veículos elétricos forneçam energia de volta à rede durante picos de demanda. O projeto britânico Sciurus demonstrou economia anual de £420 por usuário através desta tecnologia.
Carregamento sem fio está em desenvolvimento ativo no Japão e China, com a Honda colaborando com WiTricity para sistemas V2G wireless. A tecnologia permitirá carregamento contínuo através de placas embutidas em estradas.
Sistemas de gestão inteligente de carga previnem sobrecarga elétrica através de distribuição dinâmica de energia disponível, otimização baseada em tarifas horárias e suporte à integração de energia renovável.
Conclusão
A infraestrutura de recarga em condomínios brasileiros encontra-se em momento crítico de transformação. Com vendas de veículos elétricos crescendo 89% em 2024 e projeções de 1,4 milhão de unidades até 2030, a pressão por adaptação regulatória e técnica intensifica-se rapidamente. A combinação de custos elevados (R$ 8.000-20.000 por ponto), exigências técnicas complexas (NBR 17019/2022), regulamentações de segurança em desenvolvimento e precedentes judiciais favorecendo decisões coletivas cria ambiente desafiador para adoção.
O sucesso da transição energética nos transportes brasileiros dependerá fundamentalmente da capacidade de condomínios adaptarem-se a esta nova realidade. Soluções como gestão inteligente de carga, modelos de compartilhamento de infraestrutura e incentivos governamentais serão essenciais. A aprovação do PL 158/2025 poderá estabelecer marco regulatório nacional necessário, mas a transformação real ocorrerá através da convergência de vontade política, viabilidade econômica e aceitação social nos mais de 70.000 condomínios residenciais brasileiros.